Publicado em: 25/02/22
Por: Ana Laura Prates
Texto originalmente publicado em 23 de fevereiro de 2022, 11:08 no site do Jornal GGN : https://jornalggn.com.br/editoria/cultura/maes-paralelas-que-se-encontram-no-infinito-por-ana-laura-prates/
Mães: paralelas que se encontram no infinito
Por: Ana Laura Prates
Aviso aos leitores que ainda não assistiram ao filme Mães paralelas (Madres paralelas) de Pedro Almodóvar que este texto inclui passagens do filme, inclusive com referência ao seu final.
“Há verdades que só podem ser reveladas se forem descobertas”
(Incêndios, Wajdi Mouawad)
O filme Mães paralelas de Pedro Almodóvar transmite, em uma temática contemporânea, a estrutura do trágico, em sua tripla função clássica: estética, catártica e educativa. Mas é, acima de tudo, um filme sobre a dimensão da verdade. Não “A” verdade com letra maiúscula buscada pela tradição filosófica e pela religião, mas aquela com a qual nós psicanalistas nos deparamos a partir da escuta do inconsciente: a verdade que não pode ser de todo dita, pois que sua estrutura mesma inclui o que as palavras não alcançam. Que a verdade seja da ordem de um meio dizer, entretanto, não autoriza de modo algum a sustentação da mentira ou o relativismo cínico da pós-verdade.
Mães paralelas coloca novamente em cena a questão fundamental da peça Antígona, de Sófocles: o direito à lapide e à memória contra a vontade do tirano. A leitura original que Lacan realiza de Antígona aponta para o crime de desumanização praticado por Creonte ao impedir o sepultamento de Polinices. Assim, é contra o apagamento do nome e da memória que ela se insurge. Não por acaso, no final do filme podemos ler um trecho da seguinte citação de Eduardo Galeano: “não há história muda. Por mais que a queimem, por mais que a quebrem, por mais que a desmintam, a história humana se nega a calar a boca. O tempo que foi segue batendo, vivo dentro do tempo que é, mesmo que o tempo que é não o queira ou não o saiba. O direito de recordar não figura entre os direitos humanos consagrados pelas Nações Unidas, mas hoje é mais do que nunca necessário reivindicá-lo e colocá-lo em prática: não para repetir o passado, mas para evitar que se repita (…). Recordar o passado, para liberarmos de suas maldições, não para atar os pés do tempo presente, mas para que o presente caminhe livre de armadilhas”. Trata-se de uma passagem extremamente complexa, pois Galeano aponta para a lógica descoberta por Freud: o que não se recorda e não se elabora está fadado a se repetir. Mas, tal como um desdobramento da questão subjetiva, Galeano aponta para a dimensão política presente na memória.
E é exatamente nesse ponto nodal entre o que há de mais íntimo e o político – os interesses da cidade, ou seja, a lógica do coletivo – que Almodóvar situa sua Antígona, Janis – personagem principal magistralmente interpretada por Penélope Cruz – assim nomeada por sua mãe hippie em homenagem a Janis Joplin (aliás, a trilha sonora do filme é um capítulo à parte). A intimidade, e o que fazemos com ela, queiramos ou não, saibamos ou não, é política! A mãe de Janis teve uma overdose quando ela tinha apenas 5 anos, e nossa Antígona espanhola foi criada pela avó em um povoado no qual, todos sabiam, havia uma vala comum na qual estavam os corpos de seu bisavô e de outras pessoas torturadas e assassinadas pelo Estado durante a guerra civil espanhola. A outra protagonista é Ana (Milena Smit), adolescente filha de uma família da elite, que deveria ter sido tradicional, não fosse o fato de que sua mãe escolheu a carreira de atriz, deixando a filha com o pai.
A história dessas maternidades paralelas, de mulheres que, cada uma a seu modo, não aceitou o destino inexorável de uma realização absoluta enquanto mães, encontram-se agora por obra do acaso em uma maternidade onde suas filhas estão parindo. Ambas estão grávidas e solteiras. Janis escolhe levar uma gravidez não planejada, porém desejada, mesmo que para isso tenha rompido o romance com o pai do bebê. Ana, saberemos depois, engravidou enquanto vítima de um estupro coletivo não denunciado por sua família. Elas, que bem poderiam ser mãe e filha pela diferença de idade, selam seu destino ao se tornarem mães no mesmo dia e local. O artifício clássico utilizado pelo mago Almodóvar – trocar as crianças na maternidade e matar uma delas – é apenas um recurso mais uma vez emprestado do trágico, aliás recorrente em sua obra como por exemplo em “Tudo sobre minha mãe”. Ele sempre o utiliza, entretanto, para apontar outra coisa, menos explícita e visível. No cinema de Almodóvar, o importante se passa, assim como nos sonhos, na Outra cena. Neste caso, questionar a própria maternidade natural, elevando-a a guardiã da transmissão simbólica. Se o pai é o representante da lei simbólica, são as mães que a veiculam através de sua própria divisão. Não por acaso o pai da filha de Janis, Arturo (Israel Elejalde) é antropólogo forense e enquanto o drama subjetivo das duas mulheres está transcorrendo, sabemos que, no pano de fundo, ele está abrindo uma investigação para autorizar a abertura da vala comum do povoado, a partir dos testemunhos de suas moradoras. Também não é por acaso que, embora ofendida, Janis escute a observação de Arturo de que sua filha não tinha semelhança biológica com o casal parental, a não ser por um possível e desconhecido avô venezuelano.
Janis, contudo, não é tomada pela paixão da ignorância. Antes, ela quer saber a verdade que, uma vez revelada, entretanto, a faz hesitar. É belíssimo o curto tempo do filme durante o qual ela tenta sustentar a mentira, sumindo do mapa e produzindo em si própria uma angústia insuportável. Saber da morte súbita da filha biológica, criada até então por Ana como sua, produz o efeito de aproximação improvável e radical entre as duas mães. Janis precisa desesperadamente que Ana saia da alienação produzida por sua família “neutra” politicamente, demonstrando magistralmente a conivência da neutralidade com a tirania. Janis precisa que Ana saiba a verdade sobre seu país, seus desaparecidos, mas também a verdade crua do DNA – que como sabemos, não é suficiente para produzir uma filiação. E Ana aceita a formação política paralelamente às aulas de culinária e cultura musical – apontando a responsabilidade que temos com as novas gerações!
Que essa voz que age pelo direito fundamental aos rituais fúnebres, assim como Antígona, seja a de uma mulher não é um mero detalhe. Que a história do povoado seja guardada por mulheres, tampouco. O mago Almodóvar prova que o feminismo só se sustenta na política e que é incontornável que a política seja feminista, como aparece na camiseta de Janis, enquanto ensina Ana a fazer tortillas. Mas a memória inclui os homens que morreram por justiça ou que ainda lutam por ela, por meio da ciência (Arturo) ou da arte (Almodóvar). Os últimos 20 minutos do filme se passam no tempo das escavações e da descoberta das ossadas. Como não lembrar aqui do trabalho extraordinário de Eugênia Gonzaga – nossa Antígona brasileira! – com o cemitério clandestino de Perus em São Paulo, e o fato de que uma das primeiras providências do atual presidente do Brasil foi exonerá-la, dizendo que “quem gosta de osso é cachorro”.
Mas nós, que não reduzimos o cadáver a carniça somos convocados pelo mago do olhar quando finalmente ocorre o ritual fúnebre e o povoado pode despedir-se de seus mortos e honrar sua memória. Almodóvar nos inclui na cena e choramos juntos pelos nossos desaparecidos. Somos parte do povoado! Cecília, a menina, tem duas mães e o filho ou filha de Arturo que Janis agora traz no ventre é nomeado por Ana de “seu irmãozinho”. Se for homem, terá o nome do bisavô de Janis; se for mulher, se chamará Ana. Assim como em Incêndios de Wajdi Mouawad, e assim como descobrimos no divã, uma filiação só pode se concluir através de um desejo que não seja anônimo. É preciso, portanto, inscrever o nome na lápide e fazer a história das sucessivas gerações que chamamos humanidade. Só assim uma história de estupro, o trauma original que nos constitui, pode virar uma história de amor. Cecília tem duas mães, mas, mais importante do que isso, Cecília tem um povoado, é filha de um povo. É belíssima a cena em que a pequena menina olha as caveiras e, nelas, vê corpos, projetando a imagem da vida que outrora pulsava. Nossos mortos vivem, ainda, enquanto forem falados, lembrados e imaginados, e são essas vidas paralelas que se encontram no infinito que chamamos de eternidade. Daí a utopia de Maiakowski em seu poema “O amor”: “Para que doravante a família seja o pai; pelo menos o Universo, a mãe, pelo menos a Terra” (trad. Augusto de Campos e Boria Schnaiderman)
Em “Mães paralelas”, Almodóvar ultrapassa a força de sua artimanha estética, nos deixando de herança seu filme mais ético!
Ana Laura Prates – Possui graduação em Psicologia pela Universidade de São Paulo (1989), mestrado em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo (1996), doutorado em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo (2006) e Pós-doutorado em Psicanálise pela UERJ (2012).
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