Publicado em: 03/12/20

Romeu Kazumi Sassaki

Princípio 1: Onde a pessoa sem deficiência acesso livre tem, a pessoa com deficiência deverá tê-lo também.

Princípio 2: Onde o desenho universal ainda é um hiato, o Princípio 1 será aplicado de imediato.

Para o arquiteto Marcelo Pinto Guimarães, “Acessibilidade é um dos direitos fundamentais da humanidade!” (GUIMARÃES, 2012, p.1).

Para o advogado Luiz Alberto David Araújo, “A acessibilidade é um direito importante, como um direito instrumental. Sem ele, a pessoa com deficiência não consegue exercer outros direitos. Qualquer pessoa com deficiência, ou qualquer cidadão responsável, consegue entender a acessibilidade como um direito fundamental.” (ARAÚJO, 2011, p.25-26).

Para a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, em seu Preâmbulo, letra ‘v’, os Estados Partes reconhecem [portanto, o Brasil reconhece] “a importância da acessibilidade aos meios físico, social, econômico e cultural, à saúde, à educação e à informação e comunicação, para possibilitar às pessoas com deficiência o pleno gozo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais.” (BRASIL, 2008b). 

Sempre existiu uma confusão muito grande sobre o que é acessibilidade, quais são suas dimensões e como se caracteriza cada uma dessas dimensões. Tal fato tem trazido dificuldades de ordem teórico-prática para todas as pessoas envolvidas na temática da acessibilidade, ou seja, pessoas com deficiência, pessoas com mobilidade reduzida, seus familiares, profissionais das diversas áreas que se deparam com a temática, gestores, formuladores e executores de políticas públicas e tantos outros agentes intervenientes.

Por outro lado, não há outro caminho se não o do esclarecimento sobre essa confusão e essas dificuldades. Pois, o conceito de acessibilidade precisa ser melhor entendido para ser corretamente implementado.

Assim, o objetivo deste livro é o de contribuir com esclarecimentos baseados na legislação federal brasileira, em relatos de experiências minhas e de outras pessoas e em documentos mundiais pertinentes à acessibilidade. Minha pesquisa foi concentrada nos registros disponíveis em livros, cartilhas, jornais e revistas, tanto gerais como especializados.

Conheçamos o que alguns dicionários da língua portuguesa oferecem a respeito dos vocábulos acessibilidade e acesso.

acessibilidade. s.f. ETIM latim accessibilitate 1. Facilidade de acesso, de obtenção. 2. Facilidade no trato. – Moderno Dicionário da Língua Portuguesa – Michaelis 2000, p.37 (MICHAELIS, 2000).

acessibilidade. s.f. 1. Qualidade ou caráter de acessível. 2. Facilidade na aproximação, no trato ou na obtenção. – Novo Dicionário da Língua Portuguesap.22 (FERREIRA, 1975).

acessibilidade. s.f. (ano 1891) 1. Qualidade ou caráter do que é acessível. 1.1. facilidade na aproximação, no tratamento ou na aquisição. ETIM latim accebilitas/atis ‘livre acesso, acessibilidade, possibilidade de aproximação’. Dicionário Houaiss da língua portuguesa, p.31. (HOUAISS, 2009).

acesso. s.m. ETIM latim accessu 1. Aproximação, chegada, entrada, admissão, alcance. 4. Passagem, trânsito. – Moderno Dicionário da Língua Portuguesa – Michaelis 2000, p.37 (MICHAELIS, 2000).

acesso. s.m. 1. Ingresso, entrada. 2. Trânsito, passagem. 3. Chegada, aproximação. – Novo Dicionário da Língua Portuguesa p.23 (FERREIRA, 1975).

acesso. s.m. (ano 1589) 1. ato de ingressar; entrada; ingresso. 2. possibilidade de chegar a; aproximação, chegada. 3. circulação, afluência (de pessoas, veículos etc.; trânsito, passagem . 4. possibilidade de alcançar. 5. comportamento, comunicação social; trato. 6. ataque repentino, manifestação súbita. 7. INF possibilidade de comunicar-se com um dispositivo, meio de armazenamento, unidade de rede, arquivo etc., visando receber ou fornecer dados. ETIM latim accessus, us ‘aproximação, entrada; ataque de uma doença’. Dicionário Houaiss da língua portuguesa, p.31. (HOUAISS, 2009).

Portanto, ao longo de muitas décadas, estes e outros dicionários serviram como fonte comum para o uso das palavras acessibilidade, acesso e suas variações (acessível, acessar, inacessibilidade, inacessível etc.) para se referir à distância objetiva e/ou subjetiva entre pessoas e coisas, muito antes da época em que esses termos começaram a ser utilizados para se discutir sobre a necessidade e o direito de ir e vir das pessoas com deficiência em todos os espaços abertos ao público, ou seja, abertos supostamente para todos os cidadãos, sem exceção.

Pessoa com Deficiência e Pessoas com Mobilidade Reduzida

Estas duas pessoas são a mesma pessoa ou são diferentes uma da outra? Para muita gente, parecem ser a mesma pessoa, pois as palavras “deficiência” e “mobilidade reduzida” soam como se fossem similares. Entretanto, devemos entender que, em nossa legislação federal, elas não são confundidas, cada uma tem características que a diferenciam da outra.

A partir da Lei n. 10.048, de 8/11/2000, em seu art. 1°, as seguintes pessoas sem deficiência passam a ter os mesmos direitos conquistados por pessoas com deficiência no que se refere ao atendimento prioritário: “os idosos com idade igual ou superior a sessenta anos, as gestantes, as lactantes e as pessoas acompanhadas por crianças de colo.” (BRASIL, 2000a).

Infelizmente, a Lei n. 10.098, de 19/12/2000, em seu art. 2°, inciso III, deu a mesma definição para estas duas pessoas, ou seja, “pessoa com deficiência ou pessoa com mobilidade reduzida: a que temporária ou permanentemente tem limitada sua capacidade de relacionar-se com o meio e de utilizá-lo” (BRASIL, 2000b), o que aumentou o equívoco segundo o qual elas seriam a mesma pessoa. Ainda mais porque esta Lei as tornou beneficiárias das mesmas medidas no que se refere à promoção da acessibilidade realizada mediante a supressão de barreiras e de obstáculos nas vias e nos espaços públicos, no mobiliário urbano, na construção e reforma de edifícios e nos meios de transporte e comunicação, conforme determinam os seus arts. 1°; 2°; 3° e 4° e parágrafo único; arts. 7°; 10 e 11 e parágrafo único, incisos I, II e IV; art. 13, inciso III; e arts. 15 e 24 (BRASIL, 2000b).

Felizmente, quatro anos mais tarde, o Decreto n. 5.296, de 2/12/2004 (que regulamentou as Leis n. 10.048/2000 e n. 10.098/2000) corrigiu aquele equívoco. Este decreto, em seu art. 5°, §1°, inciso II, estabelece claramente que a pessoa com mobilidade reduzida é “aquela que,não se enquadrando no conceito de pessoa com deficiência, tenha, por qualquer motivo, dificuldade de movimentar-se, permanente ou temporariamente, gerando redução efetiva da mobilidade, flexibilidade, coordenação motora e percepção”. E no §2°, do art. 5°, diz que “O disposto no caput aplica-se, ainda, às pessoas com idade igual ou superior a sessenta anos, gestantes, lactantes e pessoas com criança de colo”. (BRASIL, 2004)   

Ainda segundo o Decreto n. 5.296/04, as pessoas com deficiência e as pessoas com modilidade reduzida passam a ter direito às seguintes medidas: atendimento prioritário (art. 5°) e divulgação, em lugar visível, do direito a atendimento prioritário (art. 6°, §1°, inciso VII); área especial para embarque e desembarque (art. 6°, §1°, inciso V); direito à acessibilidade (art. 8°, inciso I; art. 11; art. 12; art. 19; art. 20; art. 22; art. 22, §1° e §2°; e art. 24); semáforos com mecanismo de guia e orientação para a travessia (art. 17); balcão de atendimento e bilheteria com uma parte acessível (art. 21); assentos reservados em cinemas, teatros e similares (art. 23, §1°,§3°, §4°, §5°; ajudas técnicas para acesso a atividades escolares (art. 24, §1°, inciso II); elevadores acessíveis (art. 27 §1°, §3°; art. 28, inciso IV); transporte coletivo acessível (art. 34, parágrafo único; art. 35; art. 37); transporte coletivo rodoviário acessível (art. 38); transporte coletivo aquavário (art. 40); transporte coletivo metroferroviário e ferroviário acessível (art. 42, §2°); transporte coletivo aéreo acessível (art. 44); e ajudas técnicas (art. 64, inciso III). (BRASIL, 2004)

É oportuno que se deixe claro que existem algumas pessoas com deficiência que têm mobilidade reduzida (por exemplo, pessoas com deficiência física em um dos – ou em ambos os – membros inferiores, as quais utilizam, ou não necessariamente, bengala, andador, cadeira de rodas etc.) para se locomover; mas, nestes casos, estas pessoas são legalmente consideradas ‘pessoas com deficiência’ e não ‘pessoas com mobilidade reduzida’. Por outro lado, se uma pessoa com mobilidade reduzida (por exemplo, uma pessoa idosa sem deficiência) vier a ter uma deficiência permanente por motivo de doença, acidente etc., ela deixa de ser uma ‘pessoa com mobilidade reduzida’ e passa a ser legalmente considerada ‘pessoa com deficiência’. Outro exemplo: se uma pessoa com deficiência estiver carregando uma criança de colo, ela, legalmente, não é uma pessoa com mobilidade reduzida (apesar de estar com uma criança de colo), pois ela é uma pessoa com deficiência.

Nota sobre o termo “pessoas com deficiência”

Quem está incluído na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência? A primeira resposta está, evidentemente, no nome do documento: “Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência” (daqui para a frente, “Convenção da ONU”). O nome já explicita que este tratado internacional de direitos humanos versa sobre pessoas com deficiência – ou seja, pessoas que têm deficiência. Portanto, as pessoas sem deficiência não estão incluídas. Este e os demais parágrafos, constantes na presente Nota, foram transcritos do texto “Quem está incluído na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência?”. (SASSAKI, 2011). 

A Convenção da ONU (UNITED NATIONS, 2006; BRASIL, 2007) não define o termo “pessoas com deficiência” e, por isso, não o acrescentou dentro do Artigo 2 (intitulado Definições). Lá, os termos definidos são apenas os seguintes: “comunicação”, “língua”, “discriminação por motivo de deficiência”, “adaptação razoável” e “desenho universal”.

O Artigo 1 (intitulado Propósito) também aponta somente as pessoas com deficiência como público-alvo da Convenção da ONU, ao dizer que:

“O propósito da presente Convenção é promover e assegurar o exercício pleno e equitativo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência e promover o respeito pela sua dignidade inerente.” (grifos meus)

Logo em seguida, no mesmo artigo, há uma explicação sobre quem são essas pessoas, a saber:

“Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.” (grifos meus)

Esta explicação – que, em outro documento, a ONU faz questão de frisar que não se trata de uma definição (UNITED NATIONS, 2007) – merece ser analisada neste texto por dois motivos: primeiro, porque ela ficou sujeita a interpretações as mais variadas nos meios especializados, o que determina que façamos releituras; e, segundo, porque ela contém falta de esclarecimento, erro de terminologia e equívoco de conceituação.

INTERPRETAÇÕES

São conhecidas, formal ou informalmente, as seguintes interpretações:

[1] O Artigo 1 traz uma definição do termo “pessoas com deficiência”.

[2] Os impedimentos de natureza mental e os de natureza intelectual são a mesma coisa.

[3] Já não se diz “mental”, agora é “intelectual”.

[4] Na tradução brasileira, consta que “Pessoas com deficiência são aquelas que têm…”, mas o texto original em inglês diz: “Persons with disabilities include those who have…” (ou seja, “Pessoas com deficiência incluem aquelas que têm…”).

RELEITURAS

Contestando essas quatro interpretações, proponho que consideremos as seguintes releituras:

[1] Não é verdade.

Conforme observei acima, esta é uma explicação e não uma definição do termo “pessoas com deficiência”. A Convenção da ONU não inclui uma definição de “deficiência” ou de “pessoas com deficiência” no sentido exato, preferindo oferecer alguma orientação sobre o conceito “deficiência” e a sua relevância para o documento (UNITED NATIONS, 2007). Em ambos os termos, a condição de deficiência é conectada intimamente à condição de barreiras da sociedade, podendo estas ser físicas (por exemplo, arquitetônicas, ecológicas) ou culturais (por exemplo, na cultura, em atitudes, na legislação, em políticas públicas). Portanto, não mais a incapacidade (dificuldade ou impossibilidade) como algo derivado da deficiência que a pessoa tenha. 

[2] Não é verdade.

Estes são impedimentos de naturezas diversas (mental e intelectual); portanto, diferentes entre si: uma não é sinônima da outra. Esta releitura é comentada com detalhes na seção FALTA DE ESCLARECIMENTO, letra A, mais adiante.

[3] É verdade.

O novo termo “deficiência intelectual” substituiu o tradicional “deficiência mental”, a partir de 1995 e prosseguindo na seguinte trajetória (SASSAKI, 2007a; SASSAKI, 2007b):

Em 1995, a ONU – juntamente com The National Institute of Child Health and Human Development, The Joseph P. Kennedy, Jr. Foundation, e The 1995 Special Olympics World Games – realizou em Nova York o simpósio Deficiência Intelectual: Programas, Políticas e Planejamento para o Futuro.

[4] É verdade.

Em uma tradução ao pé da letra, a expressão include those who have significaria “incluem aquelas que têm”. Mas, em consequência, alguns especialistas interpretam, equivocadamente, que o conceito “pessoas com deficiência” esteja incluindo – além das pessoas com deficiência explicadas no Artigo 1 – outras pessoas, ou seja, pessoas sem deficiência.

Releitura 4.1: Essa interpretação contradiz todo o conteúdo da Convenção da ONU que, já no nome, diz tratar-se dos direitos das pessoas com deficiência.

Releitura 4.2: Os documentos da ONU são geralmente redigidos nos seis idiomas oficiais que ela adotou: inglês, francês, espanhol, russo, árabe e chinês. Tomando os três primeiros, que são os idiomas com os quais os brasileiros estão mais familiarizados, constatamos que, além do texto em inglês, a tradução para o espanhol também diz (grifos meus): “Las personas con discapacidad incluyen a aquellas que tengan (As pessoas com deficiência incluem aquelas que tenham). Mas a tradução para o francês se aproxima da que foi feita no Brasil: “Par personnes handicapées on entend des personnes qui présentent (Por pessoas com deficiência se entende pessoas que apresentam).

Releitura 4.3: A explicação inserida no Artigo 1 é includente, ou seja, está em conformidade com o parágrafo ‘i’ do Preâmbulo, que diz: “Reconhecendo ainda a diversidade das pessoas com deficiência” (grifos meus).

Releitura 4.4: Concluindo, não há diferença conceitual entre as duas traduções (“são aquelas que têm” e “incluem aquelas que têm”), pois ambas estão delimitadas pelo nome da Convenção da ONU e pela letra “e” do Preâmbulo, que diz: “Reconhecendo que a deficiência é um conceito em evolução” (grifos meus), o que pressupõe a noção de relatividade na explicação do termo “pessoas com deficiência”.    

Falta de Esclarecimento

A Convenção da ONU – que, entre outras qualidades, se caracteriza pelo primoroso detalhamento de conceitos, sistemas, processos, medidas e exemplos – deixou sem esclarecimento alguns pontos muito importantes, o que propicia entendimentos equivocados por parte das pessoas que utilizam o texto para fundamentar suas opiniões.

Um desses pontos está no Artigo 1, quando menciona a palavra “impedimentos”. Faltou esclarecer, por exemplo, que o conceito impedimentos se refere a “problemas de função (ou estrutura) do corpo”. E mais:

“Os impedimentos de estrutura do corpo podem envolver uma anomalia, defeito, perda ou outro desvio significativo”… e… “não são o mesmo que patologia subjacente, mas são manifestações daquela patologia”.

“Os impedimentos podem ser temporários ou permanentes; progressivos, regressivos ou estáticos; intermitentes ou contínuos”.

Estes e outros esclarecimentos constam no documento International Classification of Functioning, Disability and Health, equivocadamente traduzido como ‘Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde’. (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2001).

Outro ponto está na explicação das naturezas do impedimento, usando a expressão “natureza física, mental, intelectual ou sensorial”.

[A] É necessário esclarecermos que a natureza mental do impedimento faz parte do quadro de saúde mental (transtornos mentais) gerador da deficiência psicossocial, enquanto o de natureza intelectual se refere ao déficit cognitivo, principal gerador da deficiência intelectual. A inserção do tema “deficiência psicossocial” representa uma histórica vitória da luta de pessoas com deficiência psicossocial, familiares, amigos, usuários e trabalhadores da saúde mental, provedores de serviços de reabilitação física ou profissional, pesquisadores, ativistas do movimento de vida independente e demais pessoas em várias partes do mundo (SASSAKI, 2010; SASSAKI, 2011a: SASSAKI, 2011b).

No documento baseado em uma palestra que ministrou em 10/10/09, o prof. Gerard Quinn, diretor do Centro de Lei e Política da Deficiência, da Universidade Nacional da Irlanda, descreve a trajetória de dois campos, o das deficiências e o da saúde mental, que se desenvolveram paralelamente no passado, mas que foram juntados em igualdade de condições no contexto da Convenção da ONU (QUINN, 2009).

Proponho que a palavra “mental”, que consta no Artigo 1, seja substituída oficialmente por “psicossocial”, que diversos países já utilizavam antes da Convenção da ONU. Assim, evitaríamos a confusão com a palavra “intelectual”, além de darmos visibilidade à categoria de deficiência psicossocial.

[B] O termo “natureza sensorial” é ambíguo: leitores familiarizados com os jargões utilizados no campo da deficiência sabem que esse termo se refere aos sentidos da visão e da audição, mas, a rigor, ele abrange também o tato, o paladar e o olfato – o que complicaria o entendimento sobre quais são os tipos de deficiência cobertos pela Convenção da ONU. Por que não dizer especificamente “visual” e “auditiva”, substituindo “sensorial”?

[C] Faltou acrescentar, no Artigo 1, o impedimento de natureza múltipla, que é a presença simultânea de duas ou mais naturezas na mesma pessoa.

[D] Faltou acrescentar, no Artigo 1, a surdocegueira, que não pode ser  entendida como sendo uma “deficiência múltipla”. A surdocegueira não é mera junção de duas deficiências tradicionais: a visual e a auditiva. A surdocegueira é uma deficiência única, distinta e específica, na qual o aspecto visual e o auditivo adquirem características próprias, portanto diferentes da deficiência visual ou da deficiência auditiva, configurndo assim um novo tipo de deficiência. 

Erro de Terminologia

Todo o texto da Convenção da ONU deixa implícito que há diferença conceitual entre os termos “autonomia” e “independência” e que eles não são sinônimos um do outro. Exemplos:

[Preâmbulo: parágrafo ‘n’] “autonomia e independência individuais, inclusive da liberdade de fazer as próprias escolhas”.

[Artigo 3: parágrafo ‘a’] “a autonomia individual, inclusive a liberdade de fazer as próprias escolhas, e a independência das pessoas”.

[Artigo 16: parágrafo ‘4’] “autonomia da pessoa”.

[Artigo 19] “vida independente” (…) com a mesma liberdade de escolha que as demais pessoas”.

[Artigo 25: parágrafo ‘d’] “autonomia (…) das pessoas com deficiência”.

[Artigo 26: parágrafo ‘1’] “o máximo de autonomia” (neste caso, o texto original em inglês diz “the maximum independence” e o espanhol diz “la máxima independencia”, quando o correto é “the maximum autonomy”, como está no original em francês: “le maximum d’autonomie”).

Porém, o Artigo 20 (intitulado Mobilidade pessoal) diz: “Os Estados- Partes tomarão medidas efetivas para assegurar às pessoas com deficiência sua mobilidade pessoal com a máxima independência possível”.

Neste caso, o termo correto é “autonomia” no lugar de “independência”. Resumindo, “independência” é a faculdade de tomar decisões e fazer escolhas, enquanto “autonomia” é a capacidade de domínio no ambiente físico (coisas) e social (pessoas) para executar ações e movimentos com o corpo.

Equívoco de Conceituação

O Preâmbulo da Convenção da ONU, no parágrafo ‘e’, diz:

Reconhecendo que a deficiência é um conceito em evolução e que a deficiência resulta da interação entre pessoas com deficiência e as barreiras devidas às atitudes e ao ambiente que impedem a plena e efetiva participação dessas pessoas na sociedade em igualdade de oportunidades com as demais pessoas; (grifos meus).

Ora, em outras palavras, essa afirmação está dizendo que “a deficiência deixará de resultar (existir) se essas barreiras forem eliminadas e as pessoas com deficiência não entrarem em interação com as barreiras que continuarem existindo na sociedade”, o que constituiria um conceito equivocado, no mínimo.

Proponho, então, que o parágrafo ‘e’ do Preâmbulo tenha a seguinte redação:

e. Reconhecendo que a deficiência é um conceito em             evolução e que as barreiras atitudinais e ambientais    impedem a plena e efetiva participação das pessoas      com deficiência na sociedade em igualdade de         oportunidades com as demais pessoas;

Por sua vez, o Artigo 1 diz que “[os impedimentos], em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua [das pessoas com deficiência] participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas”. Repetindo, “os impedimentos podem obstruir a plena participação”. Ora, atualmente, entendemos que não são os impedimentos (presentes na pessoa com deficiência e quando interagem com diversas barreiras) que podem obstruir a participação dela na sociedade.

Em sentido positivo, a remoção das barreiras existentes na sociedade abre espaços para a plena participação, seguindo o modelo social da deficiência. A deficiência continuará existindo na pessoa, mesmo após a eliminação das barreiras sociais; a pessoa com deficiência não deixará de ter essa deficiência, mas as barreiras eliminadas não mais imporão a esta pessoa a incapacidade de participar plenamente da vida da sociedade.

Essa ideia do Artigo 1 – de que a deficiência em si (decorrente de impedimentos que estão na pessoa) obstrui a participação da pessoa com deficiência quando entra em interação com as barreiras da sociedade – é dos tempos da segregação e da integração, segue o modelo médico da deficiência, já foi superada e é inaceitável em plena era da inclusão.

Portanto, proponho que o segundo parágrafo do Artigo 1 seja substituído pelo seguinte:

Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, psicossocial, intelectual, visual, auditiva, surdocega e múltipla, e cuja plena e efetiva participação social em igualdade de condições com as demais pessoas pode ser obstruída por diversas barreiras construídas, naturais e atitudinais existentes na sociedade.

Romeu Kazumi Sassaki é graduado em Serviço Social. Especializado em aconselhamento de reabilitação. Consultor e docente no ensino público, Banco Mundial, Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência e Comitê Brasileiro de Tecnologia Assistida. Autor de “As sete dimensões da acessibilidade”.

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