Publicado em: 08/12/20
(Para Marielle Franco)
Hoje, trago em meu corpo as marcas do meu tempo, meu desespero, a vida num momento, a fossa, a fome, a flor, o fim do mundo (Taiguara)
Hoje é dia 14 de março do ano de 2018. Aniversário de Albert Einstein, graças a quem sabemos que E = mc2. Há algum tempo estamos no século XXI, e o fim da história parece uma distante ilusão. Ao contrário das quartas-feiras normais, hoje tenho um compromisso inusitado que muda minha rotina. Acordo às 6:00h, como de costume, sirvo o café da manhã para os filhos, despeço-me da filha que vai à escola de ônibus, levo o filho à escola de carro e dirijo-me ao meu consultório no Paraíso – que belo nome para um bairro! No caminho, escuto no rádio a notícia da morte de Stephen Hawking; puxa, que triste, que lástima, quantos anos ele tinha mesmo? Que exemplo! O mundo está ficando estranho sem algumas pessoas; ou não, sou eu que estou envelhecendo, o tempo passa. Atendo meus pacientes pela manhã, vou buscar meu filho na escola, mas hoje, depois do almoço, não volto ao consultório como sempre faço às quartas-feiras. Hoje temos um compromisso; vamos ao hospital Albert Einsten – que coincidência, no dia do seu aniversário! – onde o meu filho, que tem Síndrome de Down, vai participar de um estudo científico sobre uma droga que melhora a memória de pessoas com Alzheimer – mas o que é mesmo a memória? –, e que talvez possa também ser usada para melhorar a memória das pessoas com Síndrome de Down – o que é mesmo a memória, depois de Freud? O caminho é longo, a cidade de São Paulo é grande, passamos em frente ao palácio do governo e tenho vontade de xingar o governador, mas não o faço, give peace a chance! Estamos atrasados, precisamos chegar logo ao Einstein, o hospital, pois o mundo em que vivemos é regido pelas leis de Newton, segundo as quais tempo e espaço não são relativos: Vm = S/t. Chegamos. Estacionamos errado, no bloco E, mas precisamos chegar rapidamente ao bloco A. Entramos, então, subitamente, em um universo paralelo, recompensados pela boa ação de sermos voluntários colaboradores para o progresso da ciência – quanto orgulho Hawking, Einstein e Freud teriam de nós! O calor infernal, o trânsito, a sensação estranha de estar gazeteando numa tarde de quarta-feira, a preocupação com a reposição das sessões dos pacientes desmarcados, a morte de Hawking, físico que vencia as próprias limitações e pesquisava os buracos negros – que pena sua morte, que dó, que lástima, ele que tanto contribuiu para o progresso da ciência – no mesmo dia do aniversário de Albert Einstein – que coincidência! –, o gênio judeu, criador da teoria da relatividade, que dá nome ao hospital; tudo isso desaparece magicamente no exato momento em que nossos pés tocam o chão limpíssimo, ornando com as paredes off white sóbrias e assépticas que emolduram uma decoração clean, como se deve esperar de um local onde pessoas nascem, convalescem e morrem. No universo paralelo do Einstein, o hospital, as pessoas são educadas, vestem uniformes tão limpos quanto o chão, e ostentam crachás, nos deixando com a estranha certeza de que deveríamos ter tomado banho e nos maquiado antes de sair de casa, e de que nossa marca de sabão em pó precisa ser substituída, tanto quanto nosso desodorante. Meu filho, suado e descabelado como todo adolescente depois de uma manhã na escola, destoa no contexto; mas talvez não seja isso, porque não sou adolescente, passei a manhã atendendo no Paraíso, embora sim, esteja descabelada como sempre, e sentindo-me relativamente destoante. Penso que já sou uma senhora de 50 anos, o que me dá certo ar de credibilidade e respeito. Lembro a mim mesma que sou uma psicanalista que atende no Paraíso, isso há de ter algum valor naquela região da galáxia. A temperatura do ar condicionado é perfeita – como a ciência progrediu aqui no universo paralelo! – o que certamente ajuda na assepsia daquelas pessoas educadas de crachá. Após nos identificarmos como colaboradores de uma pesquisa científica, seguimos os labirintos – embora não sejamos ratos – cuidadosamente sinalizados, que nos conduzirão, sem desvios, ao centro de pesquisa. Ali somos recebidos calorosamente pelos pesquisadores, respondemos a questionários bizarros e quase chegamos a nos divertir, mas a verdade é que meu filho e eu não conseguimos disfarçar nossa angústia, sem saber ainda que, hoje, o dia estava apenas começando, e que o buraco – branco ou negro – sempre é mais embaixo. Sabemos, ambos, que ali é um hospital, e nossa memória freudiana burla o recalque e agora já nos conduziu inexoravelmente a 18 anos atrás, num local igualmente asséptico e climatizado, seguindo criteriosamente a mesma estética de terraço gourmet sem degustação de vinho, pois naquele tempo passado, mesmo sendo o tempo relativo, nós não estávamos lá para pesquisar nem para degustar, mas para que meu filho – graças ao progresso da ciência – fosse submetido à cirurgia cardíaca graças à qual está, hoje, vivo e saudável, sendo voluntário desta pesquisa que nos trouxe a esse universo paralelo climatizado. O jovem, educado, clean, limpo, asséptico e elitizado médico que agora o examina não evita que a ferida aberta apareça quando meu filho lhe mostra a cicatriz no peito. Sou igualmente educada e tento inutilmente arrumar o cabelo, lembrando que não estou maquiada, e sinto a angústia aumentando, o que só piora quando penso que o próximo exame será a audiometria, o que me traz tantas outras memórias cansadas. Não, ele não toma nenhuma medicação atualmente, respondo. A simpática e menos asséptica fonoaudióloga destoa sutilmente dos habitantes do universo paralelo, talvez por aquele fio de cabelo fora do lugar, o que quase me alivia por dois segundos, enquanto ela me explica que posso ir tomar um café porque o exame vai demorar. Nesse exato momento me dou conta de que havia me esquecido de trazer o material que precisava para estudar durante a espera; pois hoje meu filho não corre mais risco de morte, eu não estava, como há 18 anos, caindo no buraco negro da antessala da UTI do hospital Sírio Libanês, o universo paralelo inimigo. Por que mesmo a guerra entre árabes e judeus? Obediente, vou ao café gourmet degustar uma trufa de chocolate amargo, e mais uma vez me deparo com a cruel realidade de que preciso começar a me maquiar antes de sair de casa, sobretudo quando for fazer excursões em universos paralelos climatizados para participar de pesquisas científicas e, mais ainda, não posso mais adiar uma visita ao shopping Cidade Jardim não tão longe daqui. Será que lá vende o sabão em pó que promete o branco mais branco? Volto rápido ao corredor confortável e vazio onde, invisível, vou passar a próxima hora a esperar, sem nada pra fazer a não ser olhar para a parede assustadoramente off white, ou render-me, graças ao progresso da ciência, ao black mirror. A tela negra do smartfone, assim com um buraco da mesma cor – mas o buraco negro tem cor? Hawking, que pena, não está mais aqui para responder – me leva de volta à vida, na velocidade da luz. A primeira cena que vejo é a de professores, na Câmara Municipal de São Paulo, sendo barbaramente espancados durante uma manifestação. Vejo a cena de uma professora sangrando. O vermelho do sangue é um choque de realidade, e um tenebroso prenúncio de que o dia estava apenas começando, manchando o white da parede e o black do buraco. Desvio o olhar para o cartaz no corredor vazio do hospital; leio o nome de Einstein e me recordo de sua troca de correspondência com Freud. Por que a guerra, quente ou fria? Por que a guerra? Por que a guerra? Einstein pergunta a Freud se seriapossível controlar a evolução mental do homem, de modo a fazê-lo ir contra o ódio e a destruição. Estaria ele apostando na pesquisa científica de uma nova droga, um antídoto eficaz? Mais modestos, estamos ajudando a ciência a melhorar a memória de pessoas com Síndrome de Down – o que é a memória depois de Freud? Freud responde a Einstein que amor e ódio não são antagônicos, e confessa não acreditar no mandamento cristão amai-vos uns aos outros. A perspectiva de um fim para as guerras estaria na evolução histórica da relação com a lei, ele conclui, apostando que a história – assim como a memória – certamente não tem fim, e que a paz é uma construção frágil sustentada no conflito estrutural entre os inconciliáveis interesses do sujeito e da sociedade que paradoxalmente o constitui. Quando meu filho sai da sala da audiometria, vivo e escutando muito bem, meu sangue está fervendo, apesar do condicionamento do ar e dos ratos no labirinto das memórias freudianas. Meus cabelos continuam despenteados, bem mais do que o da fonoaudióloga, bem menos do que o da professora espancada, mas lágrimas escorrem por minha face; elas certamente teriam borrado a base, se eu tivesse me maquiado pela manhã. Sinto o gosto salgado que engulo junto ao ódio ao prefeito, ódio que eu deveria ter descontado no governador, algumas horas antes, se tempo e espaço não fossem relativos. Mas E = Mc2 e Vm = S/t. São 19:00h e meu filho ainda precisa colher urina e o sangue vermelho, da mesma cor daquele que escorre da testa aberta da professora. O show precisa continuar, mas agora eu já preciso sair o mais rápido possível daquele buraco branco, produtor de uma ciência que, ignorando Freud, reduz a memória ao cérebro, e me pergunto o que fui mesmo fazer ali no dia no nascimento de Albert Einstein, no dia na morte de Stephen Hawking, no dia em que a professora da escola da prefeitura levou porrada na cabeça e sangrou. O dia que ainda estava apenas começando. O que é a memória depois de Freud? Por que a guerra? A simpática técnica de crachá tira cinco pequenos frascos de sangue vermelho do meu filho; temos direito ao voucher para degustar um lanche gourmet com ar condicionado, mas meu suor escorre, realçando o odor nervoso de desodorante vencido e da angústia que agora já virou tristeza. Precisamos sair dali. É urgente! Estamos presos como ratos encurralados naquela terra de ninguém, naquele espaço em que o tempo está suspenso, naquele não-lugar de ares e pessoas condicionados e congelantes, enquanto outras estão sangrando o sangue quente dos ratos nas ratoeiras. Sim, é urgente sair dali, antes que fiquemos por um tempo infinito naquele hiperespaço; precisamos sair do labirinto, chegar ao bloco E, carimbar o papel do estacionamento, esperar nosso carro acompanhando as câmeras de segurança – afinal ainda estamos no universo paralelo e seguro – falar obrigada para o homem limpo de crachá nesse não-universo-sem-classe-sem-raça-sem-cor. De nada. Agora estamos livres, voltamos ao bafo quente e úmido do verão, ao crepúsculo lilás e fétido nas margens da megalópole, ao trânsito infernal que envolve as janelas fechadas pelo medo de assalto, o medo do outro, já dizia o poeta: não existe amor em SP, mas poderia tê-lo dito o Freud. Mas o carro que nos conduzirá de volta à nossa casa – o lugar familiar, colorido e bagunçado onde estaremos enfim protegidos das lembranças cansadas, das perguntas bizarras e das cicatrizes abertas – o carro nosso de cada dia, entretanto, não deixa de aparentar vaga e incomodamente – apesar da sujeira, do ar desregulado e da cor cinza –, o buraco branco do universo paralelo do qual acabamos de fugir. Estaríamos presos para sempre no labirinto branco entre o bloco E e o bloco A, assistindo pelo espelho negro a mulheres de sangue vermelho e quente sendo espancadas por homens sem crachá? O caminho de volta à vida é longo e lento, pois espaço e tempo não são relativos, e em SP, V = S/t. O ar é denso, a noite caiu, mas ainda temos um ao outro, meu filho e eu, e agora sabemos que ele escuta bem, e sinto que minha memória está boa – o que é a memória depois de Freud? Lembro de ligar o rádio no carro cinza: Escutamos muito bem, como atestou a audiometria, a voz vinda da frequência modulada; a voz falsamente natural forçando familiaridade para dizer que o trânsito está lento na cidade de São Paulo, graças à chuva que não escutamos no universo paralelo. Então a voz declara, fria, seca e precisa como a porrada na testa da professora: a vereadora Marielle Franco, defensora dos direitos humanos, acaba de ser morta a tiros dentro de um carro no bairro do Estácio, na região central do Rio. Merirelle Franco foi morta. Foi morta. No Centro do Rio. No Estácio. Foi morta a tiros. Não é relativo; foi morta a tiros, no centro do Rio. Foi morta. Hoje? No dia do aniversário de Albert Einstein? No dia da morte de Stephen Hawking? No dia em que a polícia do prefeito abriu a testa da professora? No dia em que interrompemos nossa rotina para contribuir para o progresso da ciência? Caímos em um buraco negro, um buraco negro! Hawking, nos ajude, por favor; não, hoje ele morreu, já esqueceu?! Ninguém poderá nos ajudar. Hoje? Agora? Mataram Marielle Franco? No Estácio? O poeta dizia que se alguém quer matar-me de amor que me mate no Estácio! Foi por amor que a mataram? Meu filho quer ligar o bluetooth para ouvir sua playlist com sua música preferida: Let it be. Ainda se fosse Help! Não deixo. Não posso deixar. Não temos mais um ao outro; estamos sós, cansados e fracos. As lágrimas escorrem. Porque você está chorando, ele pergunta? Por que a guerra? – penso em responder, mas só quero que ele se cale, pois preciso escutar novamente a notícia, que penso não ter ouvido, ou entendido bem, afinal minha audição e minha memória não foram medidas no hospital Albert Einstein e aos 50 anos, suspeito estar apresentando os primeiros sinais de Alzheimer. Mas na Alfa FM já estamos ouvindo hold me in your arms/hold me in your arms o que me deixa desesperada, pois às 21:45h de hoje, já sabemos que, depois de Freud, não é possível amarmos uns aos outros, muito menos tomar o outro em nossos braços, desculpa meu filho. Estou dirigindo, mas não consigo resistir ao espelho negro do smartfone, me confirmando em queda livre, que em breve chegarei ao meu destino, que certamente será o deserto de uma unidade de terapia intensiva aonde desembarcaremos pelo lado direito do trem, como na estação Paraíso do metrô. Não existe amor em RJ? Mataram Marielle de amor, bem junto ao passo do passista da escola de samba no largo do Estácio? A face do amor ao próximo tão próximo e tão outro que vira ódio, não é Freud? Mataram-na porque ela ousou perguntar por que a guerra, não foi Eisntein? As balas cavaram buracos em seu corpo negro, fazendo vazar o sangue vermelho e quente, igual ao da professora, igual ao que eu acabara de ver saindo do corpo do meu filho, para o progresso da ciência, igual ao das mulheres e jovens negros e escrachados que ela fazia visíveis e audíveis, nos labirintos das comunidades não climatizadas, mas repletas de medo, violência e vida. Ali no centro daquela cidade, a mais bela, a mais triste, o ar estava denso e o calor escaldante quando a exterminaram. Às 6:00h de hoje ela estava viva. Teria se maquiado, antes de sair? Despediu-se da filha de 18 anos? Contribuiu para o progresso? Degustou café com pão? Amou daquela vez como se fosse a última? Sentiu o gelo do ar condicionado desregulado do carro? Lembrou que era aniversário do Einstein? Lamentou a morte de Hawking? Estaria descabelada às 21:30h de hoje quando foi lançada ao hiperespaço pelo ódio que sustenta essa guerra? Às 22:00h Marielle já está morta, e já sei que, hoje, não adianta mais chegar em casa; apesar da exaustão, não existe mais lugar seguro para desembarcar, no século XXI, nem paraíso que nos empreste alguma dignidade. Hoje, nenhum sabão em pó ou líquido limpará a mancha do sangue que já foi derramado, nenhum desodorante poderá disfarçar seu cheiro acre e doce, nenhuma base maquiará a lágrima tatuada na face. A cicatriz no coração está aberta para sempre no tempo e no espaço, como lágrimas na chuva, já dizia o androide de Blade Runner antes de morrer, soltando a pomba da paz. Perto da meia noite, bebo vinho sem degusta-lo, apenas para esquecer. Mas, cambaleante, lembro-me ainda de que a história não tem fim, felicidade sim. Só me resta então a memória off white a atormentar o black out de uma longa noite insone. E a aposta em um novo amor, mais digno e menos relativo. Amanhã.
(Publicado originalmente no livro organizado por Maria Letícia Reis Perché mi piaci – A vida com elas. Calligraphie Editora)
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